sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Reclusão

O carro sem bateria à chegada de Amesterdão foi o presságio para a semana que se aproximava.
Há algum tempo que descobri que sou hipertenso. As várias análises ao sangue e à urina demonstraram valores normalíssimos pelo que a causa não foi determinada.
Após meses de medicação com resultados ineficazes, o meu médico de família aconselhou-me a consulta de um cardiologista, e este após me ter ligado a uma máquina que me mediu a tensão durante 24 horas e me ter feito uma ressonância magnética, passou-me para um endocrinologista por suspeitar que o meu problema era causado por um adenoma na supra-renal.
É claro que este também quis fazer as suas análises, que atendendo à sua complexidade me iriam obrigar a passar duas noites no hospital.
Foi assim que na tarde da passada segunda-feira me apresentei voluntariamente no Estabelecimento Prisional, perdão na Clínica.
Depois de de alguns procedimentos burocráticos, ter sido pesado e respondido a alguns inquéritos sobe a minha alimentação fui conduzido à minha cela e aí fiquei até à hora da refeição.
Só aí é que vi realmente em que buraco estava metido. A clínica era vocacionada ao tratamento de diabetes, obesidade e distúrbios alimentares.
O ansiado contacto humano como o resto dos "reclusos" não foi o que esperava uma vez que todos olhavam de lado para mim. Os diabéticos da minha mesa resmungavam constantemente e não se cansavam de dizer mal da comida que até nem era má de todo quando comparada com aquilo que já tinha engolido nas cantinas escolares. O tipo sentado à minha frente entre duas opiniões desfavoráveis sobre a sobremesa do dia anterior gabou-se de ter batido um record pessoal, e nessa noite ter tido 60 apneias do sono em uma hora.
Tinha que ver as coisas pelo lado positivo. Decididamente era o gajo mais elegante e saudável que por lá andava, e com este pensamento me deitei.
No dia seguinte fui acordado às 6:30 por uma enfermeira que distribuía a medicação. Atendendo a que já estava acordado e que me apetecia "mudar a água às azeitonas", levantei-me e quando voltava para a cama entra no meu quarto uma enfermeira para me tirar sangue.
Quando vi a sua cara de horror, ainda pensei que tinha-me esquecido de apertar os botões da carcela, mas afinal a expressão dela resultava do facto de que a recolha de sangue deveria ser feita ainda antes de eu me levantar. É claro que isto não teria acontecido se alguém tivesse tido a decência de me informar do procedimento associado aos testes que iria fazer.
Como também iriam precisar de sangue depois de eu estar em pé, a enfermeira lá me espetou a agulha no braço direito e tirou quatro tubinhos, dizendo-me para me meter novamente na cama e que passada uma hora faria a tal "recolha em repouso".
Conforme o prometido, uma hora depois a enfermeira entrou no meu quarto e no momento exacto em que a agulha entrava no meu braço esquerdo, entra a correr outra enfermeira a gritar para parar a recolha. A hora de repouso era insuficiente. O procedimento exigia que a colheita fosse feita em jejum e após 12 horas de repouso. Resumindo ficou tudo sem efeito e adiado para o dia seguinte.
Nessa tarde uma nova enfermeira apareceu-me. Esta tinha como função convencer-me a frequentar os "ateliers dietéticos". Por momentos a ideia pareceu-me boa, mas títulos como "Como viver com a diabetes" ou "A minha doença e eu" arrefeceram-me os ânimos e calmamente tentei explicar que além de não pertencer ao grupo alvo e não estar interessado, eu não iria poder comparecer uma vez que iria ter alta na manhã seguinte. Foi então que caiu a bomba. Segundo o que aparecia no sistema informático eu só iria sair na quinta-feira de manhã.
Resmunguei, ameacei fugir pela janela e perguntei porquê. A única resposta que tive foi que "assim estava no sistema", que o meu médico não estava lá e que poderia falar com ele no dia seguinte.


Lá me resignei e um par de horas depois, após a sessão de lamúrias ao jantar, deitei-me por volta das 20 horas de modo a conseguir as famosas 12 horas de repouso. Como seria de esperar uma hora depois de me ter deitado já estava a bater mal, mas como não havia nada melhor a fazer, devo ter adormecido por volta das 22:30.
Ao contrário do estabelecido, fui acordado por volta das 6:20 por uma enfermeira que me espetou uma agulha no braço direito e fez a colheita em repouso. Atendendo à vontade que tinha de sair da cama e de ir ao quarto de banho não resmunguei minimamente e fiquei feliz por escapar da imobilidade forçada. Uma hora mais tarde em vez de me fazerem a segunda recolha, trouxeram-me o pequeno almoço e disseram-me para fazer algum movimento antes de me tirarem sangue novamente. Assim o fiz durante os 45 minutos seguintes passertando pelo quarto até uma enfermeira maçarica acompanhada pela enfermeira-chefe me fizeram a recolha que faltava.
Por volta das 10 horas o meu médico entrou no quarto e logo aproveitei para lhe perguntar se tinha que fazer mais exames. Em virtude da sua resposta negativa questionei-o novamente desta vez para saber quando poderia sair tendo este respondido que o poderia fazer naquele momento. Apeteceu-me abraça-lo, mas limitei-me a estender-lhe a mão e correr para o armário para meter a roupa na mochila.




NOTA: Apesar de praticamente ter passado dois dias sozinho enfiado num quarto de hospital, as visitas da Aurora e do Gui contribuíram para a manutenção da minha sanidade mental

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